Correios e soberania nacional
Os Correios integram a soberania, a defesa e a Constituição. Privatizá-los fragiliza o Estado, não resolve eficiência e transfere riscos estratégicos ao mercado.
No dia 24 de setembro de 2013, a então presidente Dilma Rousseff denunciou1UNITED NATIONS. Postal services as critical infrastructure. UN News, New York, 2013. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2013/09/1450491. Acesso em: 28 dez. 2025., na Assembleia Geral das Nações Unidas, a espionagem2WIKILEAKS. WikiLeaks. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Wikileaks. Acesso em: 28 dez. 2025. conduzida pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O episódio marcou o debate internacional sobre soberania informacional e controle de infraestruturas estratégicas, recolocando o papel do Estado no centro das discussões contemporâneas. A partir desse contexto, tornou-se evidente que fluxos de informação, comunicação e logística ultrapassam o campo técnico e assumem caráter político e estratégico.
Em 2018, o Brasil sancionou a Lei Geral de Proteção de Dados3BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 28 dez. 2025., reforçando juridicamente essa percepção. A proteção de dados e comunicações passou a ser entendida como dever estatal. Embora hoje a segurança da informação seja associada ao meio digital, os meios físicos continuam relevantes. Dados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos indicam queda aproximada de 70%4G1. Envio de cartas diminui 70% em 20 anos, mas tradição de escrever à mão segue viva no interior de SP. G1, São Paulo, 18 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-e-regiao/noticia/2025/10/18/envio-de-cartas-diminui-70percent-em-20-anos-mas-tradicao-de-escrever-a-mao-segue-viva-no-interior-de-sp.ghtml. Acesso em: 28 dez. 2025. no envio de cartas nas últimas duas décadas, reflexo direto da digitalização dos serviços. Essa informação, contudo, não autoriza concluir que os Correios se tornaram obsoletos.
Notícias sobre prejuízos financeiros, necessidade de empréstimos financeiros e greves de trabalhadores dominam o noticiário. Cada vez mais a mídia fomenta a ideia de que a privatização seria a única solução. É nítido que alguém deseja isso.
Entretanto, o que está, de fato, por trás desse interesse recorrente em privatizar o serviço postal brasileiro? Este artigo busca analisar a crise financeira da estatal em 2025, à luz da literatura científica, e comparar a experiência brasileira com a de outros países que seguiram esse caminho.
Serviço Constitucional
Reduzir os Correios a uma empresa de cartas e encomendas é um erro analítico recorrente. A estatal é a única instituição civil com presença em todos os municípios brasileiros. Em cerca de 60% das cidades, representa a única presença física da União. Essa ampla rede não existe no setor privado pois não gera lucro. A ampla presença dos Correios é de interesse público.
Além disso, os Correios não são apenas uma empresa pública. Eles são um serviço constitucional. A Constituição Federal de 19885BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 dez. 2025., em seu artigo 21, inciso X, atribui à União a competência exclusiva para manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. Essa escolha decorre de razões históricas e estratégicas. A doutrina constitucional e a literatura internacional reconhecem o serviço postal como infraestrutura essencial à soberania, à integração territorial e à governabilidade do Estado moderno.
Em termos estratégicos, os Correios integram o sistema de defesa e mobilização nacional. Em situações de calamidade, instabilidade institucional, conflitos armados ou colapsos digitais, a rede postal funciona como meio resiliente de comunicação e logística estatal. Diferentemente das plataformas privadas, a infraestrutura postal opera independentemente de sistemas digitais globais e de interesses transnacionais. Estudos da União Postal Universal classificam os serviços postais como infraestrutura crítica em situações de crise sistêmica.
Diferente das notícias de prejuízos econômicos, a literatura científica, mostra outro cenário. Operadores postais estatais fazem parte do que se denomina infraestrutura pública estratégica, ou seja, estruturas sem as quais o Estado perde capacidade de coordenação e presença territorial. Crew e Kleindorfer6CREW, M.; KLEINDORFER, P. The economics of postal service. New York: Springer, 2002. demonstram que essa função é incompatível com a lógica estrita da maximização do lucro.
Pesquisas envolvendo mais de vinte países indicam que a privatização não melhora, de forma consistente, a eficiência ou a qualidade dos serviços postais. Estudos de Bel e Warner7BEL, G.; WARNER, M. Does privatization improve public service delivery? Journal of Economic Policy Reform, Abingdon, v. 18, n. 2, p. 123-138, 2015. revelam padrões recorrentes. Empresas privadas concentram-se em segmentos lucrativos, como encomendas urbanas vinculadas ao comércio eletrônico. Regiões rurais e cidades pequenas sofrem redução de atendimento, fechamento de agências e aumento de tarifas. O Estado, ao final, retorna como financiador, pagando pela prestação de serviços que não interessam ao capital privado.
Experiências Internacionais
As experiências internacionais8BLYTH, Mark. Austerity: The History of a Dangerous Idea. Oxford University Press, 2013. confirmam esse diagnóstico9CLIFTON, J.; COMÍN, F.; FUENTES, D. Privatization in the European Union. London: Palgrave Macmillan, 2016.. No Reino Unido, a privatização da Royal Mail resultou em aumento de preços e fechamento de agências. Na Alemanha, a Deutsche Post transformou-se em uma multinacional logística, priorizando operações globais e reduzindo o foco no serviço postal universal. Em Portugal, a privatização dos CTT levou ao encerramento de unidades no interior e à deterioração do atendimento. Na Argentina, a concessão privada do Correo Argentino fracassou, culminando em reestatização.
Um efeito recorrente desses processos é a perda de soberania funcional.10UNIVERSAL POSTAL UNION. Postal services as critical infrastructure. Berna: UPU, s.d. Após a privatização, decisões estratégicas passam a ser tomadas por grupos estrangeiros ou fundos financeiros. Dani Rodrik11RODRIK, D. The globalization paradox: democracy and the future of the world economy. Oxford: Oxford University Press, 2011. define esse fenômeno como particularmente danoso a países grandes, desiguais e periféricos, pois limita a capacidade do Estado de coordenar políticas públicas e responder a crises.
Do ponto de vista da economia política, os principais interessados na privatização não são os usuários, mas grupos econômicos específicos. Destacam-se empresas internacionais de logística, interessadas em adquirir uma rede pronta e de baixo risco inicial, fundos de investimento que buscam fluxos estáveis de retorno financeiro, e organismos internacionais que promovem a liberalização de serviços públicos como modelo normativo. O interesse recai apenas sobre as partes lucrativas do sistema, enquanto os segmentos deficitários tendem a permanecer sob responsabilidade estatal.12STIGLITZ, Joseph. The Price of Inequality. W. W. Norton, 2012.
Os Correios assumem a chamada Obrigação de Serviço Universal13BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do Estado nos anos 1990. Editora 34, 1998.. Isso implica atender toda a população, operar em regiões isoladas e manter serviços mesmo onde há prejuízo financeiro crônico. Segundo a literatura, essa obrigação é estruturalmente incompatível com a lógica privada. Por essa razão, historicamente, serviços postais permanecem sob controle estatal.
Além da integração territorial, os Correios exercem funções essenciais. Atuam no apoio a políticas públicas, distribuindo provas do ENEM, materiais eleitorais, livros didáticos, vacinas e documentos oficiais. Exercem papel relevante na logística eleitoral, atividade classificada pela ciência política comparada como função estatal sensível. Prestam serviços financeiros básicos por meio do Banco Postal, promovendo inclusão financeira. Executam comunicações judiciais e administrativas indispensáveis ao funcionamento da Justiça.
Essas funções existem porque são necessárias ao Estado, não porque geram lucro. Privatizar significa submeter essas atividades a interesses privados e, muitas vezes, estrangeiros. Significa fragilizar a capacidade administrativa, logística e informacional do país.
Questão de soberania
A discussão sobre a privatização dos Correios não é técnica nem neutra. É uma decisão política e constitucional. Trata-se de escolher entre um Estado capaz de integrar seu território, proteger suas comunicações e garantir serviços universais, ou um Estado dependente do mercado para funções essenciais. A experiência internacional é clara. Países que compreendem soberania preservam suas infraestruturas estratégicas. Os demais aprendem pela crise.
O vínculo direto entre os Correios, a Constituição Federal e o sistema de defesa nacional raramente aparece no debate público, talvez por sua gravidade institucional.
Notas
- 1UNITED NATIONS. Postal services as critical infrastructure. UN News, New York, 2013. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2013/09/1450491. Acesso em: 28 dez. 2025.
- 2WIKILEAKS. WikiLeaks. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Wikileaks. Acesso em: 28 dez. 2025.
- 3BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 28 dez. 2025.
- 4G1. Envio de cartas diminui 70% em 20 anos, mas tradição de escrever à mão segue viva no interior de SP. G1, São Paulo, 18 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-e-regiao/noticia/2025/10/18/envio-de-cartas-diminui-70percent-em-20-anos-mas-tradicao-de-escrever-a-mao-segue-viva-no-interior-de-sp.ghtml. Acesso em: 28 dez. 2025.
- 5BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 dez. 2025.
- 6CREW, M.; KLEINDORFER, P. The economics of postal service. New York: Springer, 2002.
- 7BEL, G.; WARNER, M. Does privatization improve public service delivery? Journal of Economic Policy Reform, Abingdon, v. 18, n. 2, p. 123-138, 2015.
- 8BLYTH, Mark. Austerity: The History of a Dangerous Idea. Oxford University Press, 2013.
- 9CLIFTON, J.; COMÍN, F.; FUENTES, D. Privatization in the European Union. London: Palgrave Macmillan, 2016.
- 10UNIVERSAL POSTAL UNION. Postal services as critical infrastructure. Berna: UPU, s.d.
- 11RODRIK, D. The globalization paradox: democracy and the future of the world economy. Oxford: Oxford University Press, 2011.
- 12STIGLITZ, Joseph. The Price of Inequality. W. W. Norton, 2012.
- 13BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do Estado nos anos 1990. Editora 34, 1998.
